A Liturgia

O Carácter Sagrado da Liturgia


Entrevista com O bispo Dom Fernando Rifan, diocese de Campos, RJ.


– Poderia explicar a diferença entre os termos “sagrado” e “profano”?

– Dom Fernando Arêas Rifan: Um dos motivos pelos quais nós conservamos e amamos a liturgia romana na sua forma antiga – que é chamada atualmente de forma extraordinária do rito romano –, é exatamente porque ela expressa bem o caráter sagrado da liturgia. Não que a outra não expresse, mas esta expressa de modo mais claro. Como, aliás, acontece com a diferença entre os vários ritos. Participei recentemente, ao lado de outros bispos, da Missa no rito maronita. O que os bispos mais admiraram foi o respeito e o caráter sagrado que se expressa naquele rito oriental. São modos de expressar a sacralidade, podemos dizer, o caráter vertical da liturgia, de nós para Deus, e não apenas o horizontal, que seria de homem para homem.



A liturgia é algo sagrado. Portanto, algo que nos fala de Deus. É interessante que qualquer pessoa sabe disso. Uma das coisas mais tocantes da história do Brasil foi aquela passagem da carta de Pero Vaz de Caminha, quando ele narra a primeira missa no Brasil. Ele conta que os portugueses chegaram, os padres formaram o altar, prepararam o órgão e começou a missa. Os índios foram chegando e começaram a imitar os gestos dos portugueses. Um detalhe interessante é que durante a missa chegou um outro grupo de índios. Um índio do primeiro grupo, que já estava ali, quando certamente interrogado por um índio do segundo grupo sobre o que estava acontecendo, apontou para a missa e apontou para o céu. Para mim este é o melhor comentário sobre a missa. Apontou para a missa e apontou para o céu: quer dizer, está-se passando a comunicação da terra com o céu. Está-se fazendo uma coisa sagrada. Esse caráter sagrado é que a gente não pode deixar perder na liturgia.

– Poderia dar exemplos de como se expressa o caráter sagrado?

– Dom Fernando Arêas Rifan: O latim, por exemplo, que nós conservamos na liturgia, mas não em tudo, já que as leituras e os cânticos são em português. O latim que se conserva na liturgia é exatamente para preservar o caráter sagrado, para que todo mundo sinta que ali se passa algo que não é comum no dia-a-dia. É algo diferente. Por isso que a língua é sagrada. Aliás, nas grandes religiões também se usa uma língua diferente. No rito maronita, por exemplo, a consagração é em aramaico. Não é a mesma língua que você fala. Até em outras religiões há uma língua sagrada. Não é a língua comum. Então a liturgia nessas religiões tem uma outra língua. Mesmo o Hino Nacional brasileiro não é no linguajar que se usa a cada dia. Mostra que ali há algo sagrado, é o hino da pátria. Não se precisa entender cada palavra. Precisa entender que é algo sagrado que acontece.

A língua, os gestos, as inclinações, as genuflexões, os símbolos, os panos, as toalhas, tudo tem de exprimir um caráter sagrado. Você não usa uma toalha qualquer. É uma toalha diferente. O espaço celebrativo é diferente. Os cânticos são diferentes. Então não se pode usar aquilo que é comum, profano. A não ser que seja santificado, digamos. O pão, por exemplo, você come; mas o pão eucarístico é diferente. É por isso, por exemplo, que existe o ofertório: a retirada de algo do uso comum que se coloca para uso litúrgico. Assim também com a bênção. Você consagra algo para uso mais sagrado. As vestes sacerdotais, o modo de falar. Outro exemplo: o sermão não é um discurso político, não é para ficar contando piada, não é algo reles. Você está ali para ouvir a palavra de Deus. O “terra a terra” você já ouve toda hora. Para que você precisa disso na Igreja?

– O que o senhor chama de “terra a terra” tem a ver com o termo “profano”?

– Dom Fernando Arêas Rifan: “Profano” vem do latim “pro fanum”, em frente ao templo, fora do templo, não sagrado. Por exemplo, a Igreja diz que o instrumento por excelência a ser usado na liturgia é o órgão de tubos. Ele tem um som que o nosso subconsciente já se acostumou como algo sagrado. A Igreja põe como modelo do canto religioso o canto gregoriano. Porque é um canto em que predomina a oração cantada. A oração de melodia com pouca coisa de harmonia e quase nada de ritmo.
Nas músicas modernas, por exemplo, bem profanas, tem-se a predominância do ritmo sobre a melodia e sobre a harmonia. Isso já mostra o caráter profano da música. Ela pode ser boa em outro lugar. É como dizia o próprio cardeal Ratzinger: há muita gente que confunde a igreja com o salão paroquial. Há coisas que você pode fazer no salão paroquial, mas não na igreja. Eu , por exemplo, toco acordeão. Toco música popular. Mas não na igreja. Eu toco no salão paroquial, com as crianças, na quermesse, onde as crianças tocam pandeiro, tamborim. Na igreja é o órgão. É preciso que se ressalte bem o caráter religioso, sagrado, ou seja, a sacralidade na Igreja. Na liturgia há os tempos de silêncio, porque o silêncio é algo bem respeitoso. Na Igreja não se aplaude, como se aplaude em um comício. O silêncio é tão respeitoso que já diz tudo. Não precisa ficar aplaudindo.

Nós preferimos a liturgia tradicional por tudo isso. Mas em qualquer liturgia há que se guardar o caráter religioso, sagrado, e não cair na coisa profana. O próprio Papa João Paulo II lamenta isso na Encíclica Ecclesia de Eucharistia: “às vezes transparece uma compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrifical, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa” (n. 10). Ou, como disse Bento XVI na carta aos bispos apresentando o Motu Próprio Summorum Pontificum, em muitos lugares, não se atendo às prescrições litúrgicas, consideram-se “autorizados ou até obrigados à criatividade, o que levou frequentemente a deformações da Liturgia ao limite do suportável”. Palavra infelizmente verdadeira: liturgia levada ao limite do suportável! E o Papa acrescenta: “Falo por experiência, porque também eu vivi aquele período com todas as suas expectativas e confusões. E vi como foram profundamente feridas, pelas deformações arbitrárias da Liturgia, pessoas que estav am totalmente radicadas na fé da Igreja”. 

– Há um renovado interesse pela liturgia tradicional?

– Dom Fernando Arêas Rifan: Muitos padres novos querem aprender a liturgia na forma antiga. Há dois anos eu participei de um congresso em Oxford, na Inglaterra, promovido por grupos locais, para ensinar aos padres a liturgia tradicional. Foi aberto pelo arcebispo de Birminghan. Na missa, ele falou: ‘vocês todos estão aqui para aprender a forma antiga do rito romano. Vocês vão voltar para suas paróquias e celebrar o rito normal, de Paulo VI, mas vão celebrar melhor, porque, aprendendo o rito tradicional, aprenderão mais sacralidade, a rezar com mais devoção, e isso vai ajudá-los’.
O Papa quis isso. Quando ele permitiu a missa tradicional para o mundo todo, na forma extraordinária do rito romano, ele quis exatamente isso: a paz litúrgica, que um beneficiasse o outro. O rito tradicional pode se beneficiar do rito novo na maior participação que este traz; por outro lado, o rito novo vai aprender com o rito antigo a característica de mais sacralidade.

Depois dessa paz litúrgica que o Papa quis entre os dois ritos, para que um beneficie o outro, tem havido muita procura por sacerdotes. Nós mesmos fizemos um DVD para ensinar o rito tradicional. Muitos padres têm aprendido, muitos bispos têm incentivado nas suas dioceses. Acho que isso é muito importante. Conservar a liturgia tradicional como forma de riqueza da Igreja, uma forma litúrgica de expressar os dogmas eucarísticos e o respeito. Não se trata de confronto, de briga, nada disso. É um modo da Igreja, legítimo, aprovado pela Igreja, sem causar nenhum detrimento à comunhão. Evita divisões. O Bispo local patrocinando a Missa no rito tradicional, colocando-a em suas igrejas com sacerdotes regulares e sob sua jurisdição, evita que alguns católicos caiam na tentação de querer ir buscá-la em grupos separados ou cismáticos. O Bispo poderá dizer: “Nós temos aqui, por que ir buscar a Missa no rito romano antigo em outro lugar?”


A importância da Liturgia


Entrevista ao Cardeal Cañizares - Excertos


- Quais têm sido os assuntos mais urgentes que tem que atender?

- Assuntos urgentes há todas as manhãs, referentes a excessos e erros que se cometem na liturgia, mas sobretudo, o assunto mais urgente, que é urgente em todo o mundo, é que se recupere de verdade o sentido da liturgia. Não se trata de mudar rubricas ou introduzir novas coisas, mas, do que se trata, simplesmente, é que se viva a liturgia e esta esteja no centro da vida da Igreja. A igreja não pode ser sem a liturgia, porque a Igreja é para a liturgia, isto é, para o louvor, para a ação de graças, para oferecer o sacrifício ao Senhor, para a adoração... Isto é fundamental, e sem isto não há Igreja. E mais, sem isto não há humanidade. Por isso é uma tarefa sumamente urgente e obrigatória.

- Como se recupera o sentido da Liturgia?

- Nestes momentos, trabalhamos de uma maneira muito silenciosa em toda uma série de temas que têm que ver com projetos de formação. É a necessidade prioritária que se tem: uma boa e verdadeira formação litúrgica. O tema da formação litúrgica é capital porque realmente não se conta com uma formação suficiente. A gente crê que a liturgia é uma questão de formas ou de realidades exteriores, e o que realmente nos faz falta é recuperar o sentido da adoração, isto é, o sentido de Deus como Deus. Este sentido de Deus só se poderá recuperar com a liturgia. Por isso, o Papa tem tantíssimo interesse em acentuar a prioridade da liturgia na vida da Igreja. Quando se vive o espírito da liturgia, se entra no espírito da adoração, se entra no reconhecimento de Deus, se entra em comunhão com Ele, e isto é o que transforma o homem e o converte em um homem novo. A liturgia visa sempre a Deus, não à comunidade; não é a comunidade a que faz a liturgia, senão que é Deus quem a faz. É Ele quem sai a nosso encontro e nos oferece participar em sua vida, em sua misericórdia, em seu perdão... Quando se viver a liturgia de verdade e Deus estiver verdadeiramente no centro dela, tudo mudará.

- Tão distantes estamos hoje do sentido verdadeiro do mistério?

- Sim, atualmente há uma secularização e um laicismo muito grandes, se tem perdido o sentido do mistério e do sagrado, não se vive com o espírito verdadeiramente de adorar a Deus e deixar que Deus seja Deus. Por isso se crê que tem que estar mudando constantemente coisas na liturgia, fazer inovações e que seja tudo muito criativo. Não é esta a necessidade da liturgia, senão que seja realmente adoração, isto é, reconhecimento dAquele que nos transcende e que nos oferece a salvação. O mistério de Deus, que é mistério insondável de seu amor, não é algo nebuloso, senão que é Alguém que sai a nosso encontro. Há que recuperar ao homem que adora. Há que recuperar o sentido do Mistério. Há que recuperar o que nunca deveríamos ter perdido. O maior mal que se está fazendo ao homem é querer eliminar de sua vida a transcendência e a dimensão do mistério. As conseqüências, as estamos vivendo hoje em todas as esferas da vida. É a tendência de substituir a verdade pela opinião, a confiança pela inquietude, o fim pelos meios... Por isso é tão importante defender o homem de todas as ideologias que o enfraquecem em sua tríplice relação com o mundo, com os demais e com Deus. Nunca antes se havia falado tanto de liberdade, e nunca antes houve mais escravidão.

- Quais os são os principais motivos de esperança que você observa em meio a esta Europa cada vez mais secularizada e distante de Deus?

- O grande motivo de esperança é o mesmo Papa e o que ele está constantemente dizendo. Este Papa está levando a cabo um ministério de Pedro tal como Jesus o encomendou a Pedro. Sua principal missão é confirmar na fé os irmãos e o está fazendo todos os dias. Todos os dias nos fala de algo que é a chave, o fundamento e o futuro de tudo, como é a afirmação, o reconhecimento e a adoração de Deus. Se não situamos a Deus no centro da vida do homem, não há futuro para a humanidade. É o que o Papa tem chamado ante os jovens, nada menos, "a revolução de Deus". Façamos a revolução de Deus! Por isso, para mim, o Papa, e todo seu magistério, é um grande sinal de esperança.

Excertos de uma entrevista ao Cardeal Cañizares, prefeito da Congregação para o Culto e a Disciplina dos Sacramentos.


Comentários

Leia antes de comentar:

Os comentários deste blog são todos moderados;
Escreva apenas o que for referente ao tema;
Ofensas pessoais ou spam não serão aceitos;
Obrigado por sua visita e volte sempre.