O Mistério da Santíssima Trindade


Por Dom Estêvão Bettencourt


"Se uma das características da substância de Deus é a simplicidade absoluta, como conciliá-la com a tripersonalidade divina ?"

Ao falar da Santíssima Trindade, toca-se na realidade mais íntima da vida de Deus, que necessariamente há de ser um mistério. Se Deus «coubesse» todo dentro da exígua inteligência humana, seria realmente Deus ? Não ; seria exíguo como o próprio homem. De antemão, pois, é de prever que a sua natureza ultrapasse o alcance da nossa inteligência (sem, porém, lhe impor absurdo).

Vejamos, por conseguinte, sucessivamente os fundamentos revelados do mistério da Ssma. Trindade e a maneira como pode ser ilustrado. Concluir-se-á que tal mistério, longe de ser um enigma especulativo, constitui verdade sumamente bela e vital.



1) Os fundamentos bíblicos

A fim de evitar o perigo de politeísmo no povo israelita cercado de nações idólatras, a Revelação feita aos judeus inculcava o mais estreito monoteísmo, silenciando tudo que pudesse ser mal entendido no assunto.

Quando, porém, o Messias veio ao mundo na plenitude dos tempos, «manifestou o nome de Deus aos homens» (cf. Jo 17,6), isto é, disse-lhes que Deus é não somente Criador e Legislador, mas também Pai, o qual desde toda a eternidade vive em comunhão com o seu Filho Unigênito (segunda Pessoa Divina) no ósculo ou no Amor sagrado, que é o Espírito Santo (terceira Pessoa Divina). É essa paternidade que se estende a todo cristão no dia do seu Batismo.

Há explícitas fórmulas trinitárias no Novo Testamento, como Mt 28,19 ; Jo 14,26 ; 15,26 ; tenham-se em vista também as cenas da Anunciação, do Batismo de Jesus e da Transfiguração, em que se manifestam as três Pessoas Divinas (Lc 1,32-35 ; Mt 3,16; 17,1-5). Os textos do S. Evangelho em que Jesus professa subordinação ao Pai, se referem à santíssima humanidade, e não à natureza divina do Salvador (cf. Jo 5,30 ; 8,17 ; Mt 26,39).



Modernos historiadores das religiões têm asseverado origem pagã para a doutrina da Santíssima Trindade. Apontam o fato de que vários povos antigos professavam três deuses supremos ; os egípcios, por exemplo, conheciam Osiris ou Serapis (o Touro Sagrado), Isis (a Lua-Vaca) e Horus (o Filho); os babilônios, Anu, Enlil e Ea ; os budistas cultuam Dhama (a Lei), Budha (o Propagador da Lei), Sangha (o Fruto da propagação da Lei ou a união dos ascetas entre si), etc. Contudo tais autores não saberiam explicar como a concepção pagã entrou nas Escrituras do Novo Testamento ; vão seria afirmar, como querem alguns, que a Trindade só começou a ser professada pelos cristãos sob o Imperador Constantino no séc. IV ; os testemunhos do Evangelho e de São Paulo são demasiado explícitos no caso.

Em verdade, .não se pode provar influência da ideologia pagã sobre a concepção cristã. Ao contrário, a um observador atento torna-se clara a divergência de mentalidades pressuposta pelas tríades pagãs e a Trindade cristã. Entre os pagãos, os três elementos constituem três deuses distintos, colocados no ápice de uma escala de muitos deuses ; desses três seres supremos, um é geralmente elemento feminino ou materno ; a trindade pagã vem a ser então a família humana transposta para o mundo dos deuses, refletindo por vezes o regime social ou econômico vigente em tal ou tal povo antigo ; outras vezes, as tríades pagãs implicam a personificação de forças da natureza. Em oposição a essas concepções, a doutrina cristã é essencialmente monoteísta, inculcando não menos a unidade de Deus do que a Trindade ; nunca, portanto, o cristianismo admitirá distinção entre as Pessoas Divinas tal que rompa a unidade divina; este traço revela bem que a Igreja católica se inspira de pressupostos totalmente diversos da mentalidade politeísta.

Explica-se sem dificuldade que os pagãos espontaneamente tendessem a conceber a existência de três deuses no ápice do mundo supremo. Com efeito, segundo a mística dos números (tão cara aos antigos), três é o número da perfeição (haja vista o triângulo equilátero, que está sempre em pé, sempre igual a si mesmo) ; era, por conseguinte, o número da divindade, por isto frequentemente associado a esta nas especulações do politeísmo. — Ao contrário, a Ssma. Trindade da Revelação cristã, como se verá adiante, nada tem que ver com a mística dos números, assaz arbitrária e subjetiva ; ela se radica em princípios muito mais profundos, derivados do conceito de Ser Perfeito ; em consequência, é principalmente usando da inteligência e desvencilhando-se de concepções religiosas infantis que os cristãos conseguem ilustrar o mistério da vida íntima de Deus. Tentemos fazê-lo no parágrafo abaixo.



2) A ilustração do dogma

Deus é espírito, à semelhança do qual a criatura humana (mais precisamente: a alma humana) foi feita (cf. Gên 1,26). Será, pois, pela consideração da alma humana que lograremos aproximar-nos do mistério da Ssma. Trindade.

Todo espírito possui duas faculdades características mediante as quais exerce a sua vida: a inteligência e a vontade. Pela inteligência conhecemos os objetos que estão fora de nós imprimem-nos uma semelhança de si, fecundando o nosso intelecto e levando-o a conceber ou gerar uma imagem (quase uma «chapa fotográfica») desses objetos; projetamos essa imagem ante a nossa inteligência e a contemplamos. É o que se chama «conceber uma ideia» ou «pronunciar uma palavra interior». Acontece, porém, que o conhecimento da verdade não pode deixar de suscitar o amor; passamos então a gravitar em torno do objeto conhecido, pondo em ação a nossa segunda faculdade espiritual que é a vontade. Ao passo que a inteligência como que atrai o objeto a si (pelo conhecimento recebemos uma semelhança do objeto), a vontade se deixa atrair ; tende a ir buscar e a possuir plenamente o objeto conhecido, para finalmente deleitar-se nele. Uma vez conseguido este deleite, dá-se por satisfeita e repousa. — Ora nossa vida humana consta de uma série de ciclos desse tipo ; dotados da capacidade de apreender o Infinito, aqui na terra só conhecemos objetos finitos ou conhecemos o Infinito (Deus) à semelhança das coisas finitas, de modo que nunca alcançamos a quietude definitiva; vamos sucessivamente conhecendo os aspectos da verdade, passamos a gravitar em torno deles, obtendo de cada vez algum deleite; este, porém, sendo finito, não nos sacia plenamente. Por conseguinte, sempre recomeçamos a conhecer e amar neste mundo. Somente no céu, onde os justos veem a Deus face a face, é que conhecimento e amor estão definitivamente estabilizados.

Pois bem. A atividade espiritual que se dá no homem com tanta imperfeição, verifica-se em Deus de maneira perfeita. Deus tem também o seu conhecimento e o seu amor. O conhecimento divino, porém, não é progressivo como o nosso, mas num só ato apreende a Verdade — a Verdade, que não é distinta de Deus, mas que é o próprio Deus, Assim Deus, num ato único, eterno como eterna é a vida divina, conhece a Si mesmo de maneira exaustiva; o que significa: num só ato concebe-Se ou pronuncia-Se a Si mesmo na eternidade, o produto dessa concepção não é uma imagem parcelada da verdade, como em nós, mas é a própria Verdade, o próprio Deus a subsistir diante de Deus; é Pessoa Divina, como o sujeito do conhecimento é Pessoa Divina. A esta segunda Pessoa a S. Escritura dá o nome de Logos (Palavra, Imagem mental) ou de Filho (já que todo filho é a expressão subsistente de seu genitor), ficando o titulo de Pai reservado à primeira Pessoa.

Contemplando a sua infinita Perfeição, Deus não pode deixar de comprazer-se em Si. Ora esta complacência é outro ato em que Deus se afirma com toda a sua perfeição; é o Amor de Deus ou Deus que ama; é o Amor subsistente que vincula o Pai ao Filho e o Filho ao Pai, rematando (por assim dizer) o processo da vida divina, A esta terceira Pessoa a Escritura d& o nome de Espírito Santo.

Faz-se mister ainda notar as duas seguintes notas das «processões» divinas (assim se chamam os dois atos característicos da vida divina):

a) elas não implicam divisão da infinita. Perfeição ou da Substância de Deus ; esta fica" sendo uma só e a mesma, afirmando-se, porém, três vezes. Destarte a Trindade de Pessoas não derroga cm absoluto à unidade e simplicidade da natureza divina. As três pessoas só diferem entre si por aspectos relativos, não por títulos absolutos, isto ê, diferem porque a primeira é Deus que concebe e a segunda é Deus mesmo que corresponde a este ato de conceber ; por sua vez, a terceira Pessoa é Deus que corresponde ao ato de amor emitido pelo Pai e o Filho. As três Pessoas, portanto, têm (ou são) toda a Perfeição Divina, que se diversifica apenas por três modos de subsistir ; e esses três modos se apelam mutuamente, são correlativos e inseparáveis entre si, mas não se podem identificar uns com os outros, porque os termos correlativos, por definição, se opõem um ao outro (todo pai, na medida em que é pai, se distingue de seu filho, embora só seja pai caso exista o filho).


b) As processões em Deus se verificam sem sucessão cronológica nem subordinação; nossa pobre linguagem, porém, nos leva a falar, como se entre elas houvesse anterioridade e posterioridade. Desde que Deus existe, isto é, desde toda a eternidade, Deus é Pai, Filho e Espírito Santo ; a geração e o deleite amoroso são a própria vida de Deus, não são atos adventícios a ela. Vê-se assim que tão necessária e essencialmente como Deus é uno, Deus também é trino ; vê-se outrossim que Deus não poderia subsistir nem em duas, nem em quatro ou cinco Pessoas, mas é muito logicamente uno e ao mesmo tempo trino» A Trindade não é menos necessária do que a unidade em Deus.

«Ser em três Pessoas», Pai, Filho e Espírito Santo, é na realidade a mesma coisa que «ser Deus», embora a nossa inteligência não perceba logo a equivalência destas proposições. Se podemos separar os dois enunciados, isto se dá porque conhecemos a Deus indiretamente, através das criaturas, no regime da fé ; no céu, porém, perceberemos claramente o fundamento da sinonímia.

Sobre a Santíssima Trindade



"Um Deus, um Cristo, um Espírito de graça" (Clemente de Roma, ano 96, Carta aos Coríntios 46,6).

"Como Deus vive, assim vive o Senhor e o Espírito Santo" (Clemente de Roma, ano 96, Carta aos Coríntios 58,2).

"Vós sois as pedras do templo do Pai, elevado para o alto pelo guindaste de Jesus Cristo, que é a sua cruz, com o Espírito Santo como corda" (Inácio de Antioquia, ano 107, Carta aos Efésios 9,1).

"Procurai manter-vos firmes nos ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, para que prospere tudo o que fizerdes na carne e no espírito, na fé e no amor, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio e no fim, unidos ao vosso digníssimo bispo e à preciosa coroa espiritual formada pelos vossos presbíteros e diáconos segundo Deus. Sejam submissos ao bispo e também uns aos outros, assim como Jesus Cristo se submeteu, na carne, ao Pai, e os apóstolos se submeteram a Cristo, ao Pai e ao Espírito, a fim de que haja união, tanto física omo espiritual" (Inácio de Antioquia, ano 107, Carta aos Magnésios 13,1-2).

"Que não somos ateus, quem estiver em são juízo não o dirá, pois cultuamos o Criador deste universo, do qual dizemos, conforme nos ensinaram, que não tem necessidade de sangue, libações ou incenso. [...] Em seguida, demonstramos que, com razão, honramos também Jesus Cristo, que foi nosso Mestre nessas coisas e para isso nasceu, o mesmo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, procurador na Judéia no tempo de Tibério César. Aprendemos que ele é o Filho do próprio Deus verdadeiro, e o colocamos em segundo lugar, assim como o Espírito profético, que pomos no terceiro. De fato, tacham-nos de loucos, dizendo que damos o segundo lugar a um homem crucificado, depois do Deus imutável, aquele que existe desde sempre e criou o universo. É que ignoram o mistério que existe nisso e, por isso, vos exortamos que presteis atenção quando o expomos" (Justino Mártir, ano 151, I Apologia 13,1.3-6).

"Os que são batizados por nós são levados para um lugar onde haja água e são regenerados da mesma forma como nós o fomos. É em nome do Pai de todos e Senhor Deus, e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e do Espírito Santo que recebem a loção na água. Este rito foi-nos entregue pelos apóstolos" (Justino Mártir, ano 151, I Apologia 61).

"Eu te louvo, Deus da Verdade, te bendigo, te glorifico por teu Filho Jesus Cristo, nosso eterno e Sumo Sacerdote no céu; por Ele, com Ele e o Espírito Santo, glória seja dada a ti, agora e nos séculos futuros! Amém." (Policarpo, ano 156, Martírio de Policarpo 14,1-3).

"De fato, reconhecemos também um Filho de Deus. E que ninguém considere ridículo que, para mim, Deus tenha um Filho. Com efeito, nós não pensamos sobre Deus, e também Pai, e sobre seu Filho como fantasiavam vossos poetas, mostrando-nos deuses que não são em nada melhores do que os homens, mas que o Filho de Deus é o Verbo do Pai em idéia e operação, pois conforme a ele e por seu intermédio tudo foi feito, sendo o Pai e o Filho um só. Estando o Filho no Pai e o Pai no Filho por unidade e poder do Espírito, o Filho de Deus é inteligência e Verbo do Pai. Se, por causa da eminência de vossa inteligência, vos ocorre perguntar o que quer dizer "Filho", eu o direi livremente: o Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, pois desde o princípio Deus, que é inteligência eterna, tinha o Verbo em si mesmo; sendo eternamente racional, mas como procedendo de Deus, quando todas as coisas materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as coisas mais pesadas com as mais leves, para ser sobre elas idéia e operação" (Atenágoras de Atenas, ano 177, Súplica pelos Cristãos, 10,2-4).

"Como não se admiraria alguém de ouvir chamar ateus os que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e o Espírito Santo, ensinando que o seu poder é único e que sua distinção é apenas distinção de ordens?" (Atenágoras de Atenas, ano 177, Súplica pelos Cristãos 10).

"Igualmente os três dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade: de Deus [=Pai], de seu Verbo [=Filho] e de sua Sabedoria [=Espírito Santo]" (Teófilo de Antioquia, ano 181, Segundo Livro a Autólico 15,3).

"Com efeito, a Igreja espalhada pelo mundo inteiro até os confins da terra recebeu dos apóstolos e seus discípulos a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos profetas, anunciou a economia de Deus..." (Ireneu de Lião, ano 189, Contra as Heresias I,10,1).

"Já temos mostrado que o Verbo, isto é, o Filho esteve sempre com o Pai. Mas também a Sabedoria, o Espírito estava igualmente junto dele antes de toda a criação" (Ireneu de Lião, ano 189, Contra as Heresias IV,20,4).

"Foi estabelecida a lei de batizar e prescrita a fórmula: 'Ide, ensinai os povos batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo'" (Tertuliano, ano 210, Do Batismo 13). 

"Cremos... em um só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, nascido do Pai como Unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito, consubstancial com o Pai, por quem foi feito tudo que há no céu e na terra. [...] Cremos no Espírito Santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai, com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, o qual falou pelos Profetas" (1º Concílio de Nicéia, ano 325, Credo de Nicéia).

Fonte: http://www.veritatis.com.br

Outras Fontes:


  • Tertuliano: (ano 216) Contra Praxéas 2; 9; 25.
  • Orígenes: (ano 225) Doutrinas Fundamentais IV,4,1.
  • Hipólito de Roma: (ano 228) Refutação de Todas as Heresias 10,29.
  • Novaciano: (ano 235) Tratado sobre a Trindade 11.
  • Papa Dionísio: (ano 262) Carta a Dionísio de Alexandria 1; 2; 3.
  • Gregório Taumaturgo: (ano 265) Declaração de Fé.
  • Sechnall de Irlanda: (ano 444) Hino a São Patrício 22.
  • Patrício: (ano 447) O Peitoral de São Patrício 1; (ano 452) Confissão de São Patrício 4.


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